terça-feira, 10 de março de 2009

Os espelhos de nós

Este fim-de-semana estive em mais um jantar de turma da escola primária.

Embora viva actualmente em Lisboa, eu sou da terra e gosto de contactar com o pessoal da minha terra. A gente que me viu crescer, que sabe quem sou e de onde venho, que partilha as mesmas origens e fala a mesma linguagem, os que me dizem adeus na rua.
Lá sinto-me naturalmente protegida por estar em casa, por conhecer todas as ruas, embora já me falhem alguns rostos, as indicações são dadas pelos nomes das casas das pessoas e não pelos nomes das ruas e avenidas, até porque não há avenidas.
Mas a mudança, o progresso, bom ou mau, também ocorre por lá, como no resto do país.

Aqui, na capital, uma cidade cosmopolita, o anonimato é o meu escudo e a minha fraqueza, sou mais uma na massa dos habitantes da Grande Lisboa. Sou mais uma pessoa que não é de cá.

Conheço muito pouca gente cuja família seja mesmo de Lisboa há pelo menos, duas gerações. Parece-me que ser de Lisboa é ser de mais lado nenhum. Para onde é que vão as pessoas de Lisboa no Natal e na Páscoa, quando são mesmo de Lisboa? Ficam cá, sem terra para ir, gente que os reconheça, sem o calor de uma palmada nas costas, dada por alguém de ar patusco, por ser bem-vindo de volta à terra. Sem horas e horas de filas de trânsito para voltar à capital, com a bexiga tão cheia de urina como o porta-bagagens de couves, abóboras e laranjas.

Estava eu a dizer que fui à terra jantar com a malta que andou comigo na escola primária.
Foi mais um jantar com caras conhecidas, sem novidades excepcionais, apenas com a pele mais curtida pelo tempo, mais velhos desde a última vez que nos vimos.

De facto, de toda a minha vida académica, é o grupo mais fácil de juntar porque os contactos vão-se mantendo mais ou menos os mesmos através de nós ou dos nossos pais. Mas é também o grupo onde somos mais distantes, apenas partilhamos as nossas raízes, e isso já aconteceu há muito tempo. O que é normal, na escola primária resumíamo-nos a um grupo homogéneo de crianças que vão aprender a ler e escrever, sem aspirações ainda bem definidas, tão vazias quanto os nossos cadernos no início do ano.

Hoje, há os que saíram da turma para irem com os pais para outras terras, há os que ficaram na terra, os que foram estudar para fora e voltam de vez em quando, e os que foram tentar a sorte noutro país. Há também casais que se formaram no grupo, eu acho-lhes graça por se conhecerem quase desde sempre.

No fundo, conhecemo-nos todos bem e mal. É uma sensação de conforto e desconforto, formam-se grupos, verificam-se os rótulos para ver a composição de cada um. É quase como se abrisse uma gaveta para onde vamos metendo os mais variados objectos indiscriminadamente, sem nunca olhar lá para dentro, e depois vemos que temos um mundo de coisas diferentes que, em comum, só têm o de caber no mesmo compartimento.

Se não ficamos perto de alguém que conhecemos um pouco melhor, há o risco de haver um silêncio desconfortável, aquele silêncio em que não há mesmo nada para dizer, tão mudo que chega a ser ridículo, e se o quebramos é, de certeza, para dizer alguma idiotice.

Perguntamos pelos ausentes, o que se sabe deles, mas há sempre um limite quando as perguntas se fazem aos presentes. Ou porque de uns já se sabe a história, ou porque de outros já se sabe que não querem falar do assunto. Também há os exageradamente faladores e arrependemo-nos de morte de ter perguntado simplesmente «Então, tudo bem?».

Há de tudo, inclusivé a tendência de procurar os traços de infância, recordar pequenas histórias que são sempre lembradas, tal como a de uma colega que ganhou o título de ser a mais destemida da turma depois de, durante uma briga com o rapaz mais violento - e franzino, quando lhe chegava a mostarda ao nariz amarinhava por cima de fosse quem fosse com murros e pontapés-, lhe ter ferrado o dente no rabiosque; ou de quando simulámos um casamento durante o intervalo, em que participou a turma toda, cada qual com o seu papel; ou ainda locais como a laranjeira onde nos pendurávamos para dar cambalhotas -acho que ainda lá está, forte e baixa, suportando as gerações e gerações das crianças da terra que nela se continuam a pendurar-, as escadas do refeitório que eram a nossa nave-mãe espacial, de onde partíamos fingindo ser naves para explorar o espaço com os braços abertos a correr à volta da escola; ou dos primeiros amores, com os inocentes bilhetinhos que trocávamos a dizer «Queres namorar comigo? Sim? Não?», desenhando um quadrado ao lado de cada resposta para ser assinalado com uma cruz e o bilhete devolvido.

No fundo, acho que estes encontros servem também para pensarmos, com os outros, acerca de nós, para recordarmos quem éramos na nossa infância e reflectirmos acerca do que nos tornámos. Foram, no geral, bons tempos. Digo no geral, porque há sempre alguém para quem a infância foi... complexa. Para mim, foi simplesmente, feliz.

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