terça-feira, 2 de junho de 2009

A velha Singer

Existe uma máquina de costura, lá em casa, que me conta coisas sem falar comigo. Faz parte da família.

É uma Singer a pedal de cabeça preta com desenhos dourados, lascada pelo tempo e por ter passado por todas as mulheres lá de casa. Também passou pelas mãos do meu pai, que a arranjou sempre que tinha um problema.

Balançando com o pé no pedal que puxa a correia que já foi arranjada e rearranjada inúmeras vezes, faz girar uma grande roda que acciona todo o mecanismo.

Pés de ferro trabalhado e pintado a castanho, tampo da mesma cor, por baixo do qual está uma alavanca negra, forrada a esponja para não magoar o joelho direito com que a empurramos, para levantar o calcador.

Tem uma gaveta do lado esquerdo com o puxador prateado a cair, em forma de bola com mossas do tempo, onde se guarda a melhor tesoura da casa, junto com algumas peças que não servem para nada, mas que um dia poderão servir.

Gosto de ver as linhas a percorrerem em espiral os distribuidores, desde o caneleiro até à agulha que perfura o tecido e o cose, habilmente, ao ritmo do pé, travando ou rematando com a roda de mão.

Tem o cheiro acre da madeira antiga, e o vigor mecânico e ritmado de uma máquina que, por ser simples, se manteve a trabalhar ao longo das décadas. Naquele tempo não se pensava na reforma.

Sempre me lembro de ser guardada sob uma cortina grossa de sarja verde com flores rosa, um romântico estampado rematado por um folho, costurada de propósito para o efeito.

Lembro-me dela morar durante muitos anos n’«aquela casa», uma grande sala que foi parte da primeira fábrica do meu pai que, depois de mudar para outras instalações, passou a funcionar como um anexo da casa onde a minha mãe tratava da roupa.

Ficava muda sob a janela de ferro e vidro martelado, por onde escorria a luz amarelada do sol ou, estando aberta, entravam as flores regadas de fresco rodeadas de abelhas, até que alguém viesse conversar com ela, com um fecho para mudar ou uma baínha para coser.

A minha mãe bordou nela, a bastidor, grande parte do enxoval, flores, ramagens e monogramas em panos e lençóis brancos com cores mais garridas ou mais discretas, que depois engomava e guardava na arca para só usar nos dias de festa, ou, não chegando a ocasião, ficar de herança para as filhas.

Foi também alvo das atenções da minha irmã que, habilidosa e criativa, no inicio às escondidas, conquistando depois a autorização para a manusear, fazia nascer matrafonas de algodão branco, com vestido e touca a preceito que fazia de restos de tecido debruado a rendinhas que tirava da velha lata azul das bolachas, e de onde tirava também as fitas de seda que atavam as tranças de lã com que fazia os cabelos. Ao lado da lata azul, estava sempre a lata cor-de-rosa dos bombons, casa dos botões de variadíssimas formas e cores, mais ou menos diferentes, alguns novos à espera de uso, mas na sua maioria aproveitados de roupas que se desmanchavam e que eu conhecia muito bem.

Obedecendo à tradição familiar, foi-me permitido também aprender a coser à máquina, a controlar o balanço do pedal, devagarinho... mais depressa... usando a mão para travar a roda ou rematar, e assim conversar com a velha Singer.

Em casa dos meus pais, sempre houve máquinas de costura ao meu redor, mais ou menos sofisticadas, umas que nunca avariavam, outras que nunca funcionavam bem. Mas aquela máquina de costura atingiu, pela sua herança, pela sua antiguidade, o estatuto de relíquia, um valor sentimental e intransmissível, como a presença de várias gerações.

1 comentário:

O Espírito do Tai Chi disse...

Amiga BatRitinha,

Algumas "coisas" tem valor porque fazem-nos trazer à memória "retratos" que guardamos bem fundo na alma. E isso não há dinheiro que pague...

Um bom fim-de-semana!...

António Serra